O jardim e a noite
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Atravessei o jardim solitário e sem lua,
correndo ao vento pelos caminhos fora,
para tentar como outrora
unir a minha alma à tua,
ó grande noite solitária e sonhadora.
Entre os canteiro cercados de buxo,
sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
e os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
que devia acordar do seu inquieto sono
a terra negra dos canteiros
e os meus sonhos sepultados
vivos e inteiros.
Mas sob o peso dos narcisos floridos
calou-se a terra,
e sob o peso dos frutos ressequidos
do presente,
calaram-se os meus sonhos perdidos.
Entre os canteiros cercados de buxo,
enquanto subia e caía a água do repuxo,
murmurei as palavras em que outrora
para mim sempre existia
o gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
de fórmulas de magia.
Docemente a sonhar entre a folhagem
a noite solitária e pura
continuou distante e inatingível
sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
a minha ânsia carregada de impossível,
contra a sua harmonia perfeita.
Tomei nas minhas mãos a sombra escura
e embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
mas nada pôde acordar dos seus escombros
o meu grande êxtase perdido.
Só o vento passou pesado e quente
e à sua volta todo o jardim cantou
e a água do tanque tremendo
se maravilhou
em círculos, longamente.
Em Poesia/ Sophia de Mello Breyner Andresen, 5ª edição,
Editorial Caminho S.A., Lisboa, Portugal, 2005, pág. 15/16.